Ramona em seu primeiro Audax
Pedalar 150 km. A aventura parecia grande demais para mim. Afinal, não sou atleta; desde que retomei a bicicleta, há quase dois anos, que eu a associo a meio de transporte, e não a exercício físico. Sedentária a vida toda, se me perguntassem há dois anos se um dia eu estaria fazendo o Audax, que é uma prova não-competitiva de bicicletas, em que o objetivo é chegar dentro de um determinado tempo, eu diria que era loucura. Aliás, se me perguntassem isso há três meses, eu provavelmente ainda diria que era loucura, que não tinha preparo físico, que fico sem fôlego nas menores subidas… Nessa época, Audax já era algo que eu até pensava em fazer, mas sabe lá quando, se resolvesse treinar e tal.
Mas aí mudei pra Minas. Lá, comecei a fazer yoga, o que me rapidinho me deu mais flexibilidade, força, capacidade respiratória… E, principalmente, algum conhecimento do corpo (éramos quase ilustres desconhecidos até então). Eu estava me sentindo melhor, com mais capacidade física, e psicológica também (em longas distâncias, serenidade é o que importa; quem entende diz que a maior barreira é mental, e na prática a gente vê que é isso mesmo).
Aí, quando voltei a São Paulo para o emprego atual, a duas semanas do Audax, Odir começou a botar pilha, dizendo que fazer o Desafio 150 em Boituva, na Castelo, seria mais fácil que fazer o Desafio 100 em Holambra, na serra, o que alguns amigos já tinham feito. (Os Desafios são a parte mais fácil do Audax: são uma espécie de treino ou aperitivo para os brevets, que começam mesmo a partir de 200km, os quais são pré-requisito para os 300 km, que são requisito para os 400km, 600km…). Disse que a altimetria (leia-se: quantidade de subidas estafantes) seria bem mais fácil, que o trecho era praticamente plano, que o acostamento da Castelo era largo, os caminhões passavam lááá longe, e blá blá… Tanto ele disse que o negócio começou a parecer possível. E aí pensei: posso não dar conta de 150 km, mas 75 km, talvez… E pensei em ir com o objetivo de fazer metade da prova, para ver como era. Chegando na metade, eu avaliaria: se estivesse bem, voltaria de bici; se não, pegaria um ônibus para voltar até a cidade e abriria uma cerveja pra celebrar, pois o feito já estaria de bom tamanho para o meu preparo.
Paradinha no ponto de ônibus na Castelo
E aí, sabe a música dos Beatles, With a Little Help From My Friends? Foi assim. Márcio e sua confiança inabalável de que tudo daria certo; Odir sócio da Duracell, botando pilhas e pilhas pra animar; Gola imprimindo termo de compromisso, me emprestando a playlist para carregar o iPod, que foi emprestado pela Talita; Lê Biazon comprando o colete refletivo antes, e gente experiente como Mig e Silas dando dicas pra lá de preciosas; Edu levando capacete pra Aline trazer pra mim na Bicicletada, porque eu esqueci (!)… Até gente que eu nem conhecia muito foi incrível comigo, como Lucas, professor da academia que fez um treino emergencial de bike pra eu ganhar mais confiança em ir para a prova [eu passei muitas horas em cima da bicicleta da academia naquela semana]; o Gomes, taxista-ciclista indicado pelo Cleber Anderson, o qual aliás fez o bike fit e me recomendou colocar um pedal com clip, duas coisas salvadoras para a prova. Yes, I get by with a little help from my friends.
Cartaz
Tive pouco tempo para me preparar: uns 10 dias. Fiz o treino emergencial na academia, bike fit na bicicleta, para deixá-la com as medidas certinhas para mim, coloquei o pedal com clip de um lado e do outro normal, comprei as coisinhas que precisava, emprestei as outras… E foi isso.
Na semana da prova, dormi cada dia menos horas. Percebi que o lance do psicológico influenciar não é apenas na hora da prova, é antes também. Estava tão ansiosa que mal conseguia dormir. Na quinta-feira, dormi quatro horas. Na sexta, apenas três. De puro nervosismo.
Na véspera da viagem, me atrapalhei de várias formas diferentes. Ansiedade, ansiedade. Pouparei os detalhes. Basta dizer que eu deveria pegar o ônibus das 16h15 com o Márcio na rodoviária da Barra Funda, e que às 15h eu ainda estava na bicicletaria tentando desmontar a bicicleta para colocar em um mala-bike que o Lindóia muy gentilmente me emprestara, mas que era pequeno demais para a Ramona e eu não testara antes. Em vez de apenas tirar a roda e colocar no táxi… Mas nããão, eu tinha que tentar do jeito mais difícil. Rodei a cidade com o taxista-ciclista gente boa, perdi o ônibus das 17h e só consegui embarcar às 18h30. Sem capacete. [O bonezinho pra colocar embaixo e não suar o cabelo eu lembrei de pegar]. Três itens obrigatórios na prova: colete refletivo, pisca e CAPACETE. Fora a bicicleta. Enfim. Ele foi entregue pelo Edu para a Aline, na Bicicletada, e chegou em Boituva horas depois.
Depois da pizza de confraternização, já em Boituva, tentei dormir cedo, mas não deu. Ansiedade pulsando. Com o TOC que desenvolvo nessas horas, fiquei dobrando e arrumando as roupas, enfileirando as comidinhas, arrumando as coisas, enfim, até as meninas chegarem. Elas também estavam ansiosas, e fomos dormir por volta de uma da manhã, apenas. Às quatro e meia, uma delas levantou para ir ao banheiro, a outra achou que já era hora de acordar e aí já levantamos. Ninguém estava conseguindo dormir mesmo, afinal. Fizemos alongamentos de yoga, o que foi ótimo, tomamos café no hotel e fomos para a vistoria, que era às seis da manhã, na praça. Lá descobri a existência do bretelle, um dia inesquecível na minha vida. Agradeço ao Silas pela graça alcançada.
Finalmente, 7h20, partimos. Já na saída da cidade, uma neblina incrível, linda, emocionante. Eu pedalando ao lado de Márcio e vendo a emoção dele, me contagiando com o jeito dele de encarar a prova, uma coisa quase espiritual. Ele me avisou para não ficar nervosa se ficasse sozinha, que Audax é uma prova solitária, que cada um vai no seu ritmo. Mais um pouco de papo, ele viu que eu estava bem e foi num ritmo mais rápido, afinal, tinha 300 km para pedalar, enquanto eu ia devagar e sempre pedalando rumo aos meus 75, hehe.
Caminhão na Castelo. Acostamento era largo
Logo fiz a primeira paradinha, afinal, tinha esquecido de colocar o iPod. Aí tem que parar e colocar, na estrada não é quem na cidade, você vai pedalando e pedalando nonstop. Sem semáforos! Sem carros tirando finas de você! Uma delícia que só. Toda hora eu parava pra arrumar o fone que caía ou algo assim e alguém da organização parava pra perguntar se estava tudo bem; eles são super atenciosos. Logo no começo, fui ultrapassada pelos outros ciclistas. E minha prova foi se tornando solitária como Márcio previra: eu no meu ritmo, ouvindo as músicas (algumas escolhidas por mim, algumas “emprestadas” pelo Gola, que subiu sua playlist na véspera, já que eu não tivera tempo de uploadar tantas horas de trilha sonora).
De repente, olho para o céu azul, azul, azul (estava um dia besta de tão bonito), e o que vejo? Um balão! Colorido! Pensei: entrei em um cartão postal e não me avisaram, em um papel de carta, não é possível uma coisa dessas. Boituva é região de balonismo, e em um dia com tempo bom como aquele, não é difícil ver balões, descobri depois. Mas na hora, eu estava desbundada. Estava achando tudo lindo e maravilhoso. Fiz uma parada na ida, na beira da estrada mesmo, debaixo das árvores, uma espécie de piquenique. (As comidinhas eu levei na pochete, um sistema que copiei do Mig, com quem concordo em várias coisas, excetuando a beleza inerente dos capacetes).
O Odir tinha falado a verdade: acostamento largo, caminhões passando longe, altimetria fácil. A única subidinha maior para o pessoal do 150 era chegando ao PC, o ponto de parada na metade do caminho, mas eu estava esperando por ela, fui bem tranquila, sem pressa. [Odir só esqueceu de avisar que os caminhoneiros buzinam pra cumprimentar e a gente quase morre do coração. Até acostumar com aquilo… Vou lançar a campanha “Caminhoneiro, cumprimente mentalmente!” Ou com luzes. Sei lá]. Foi chatinha, mas subi. Cheguei no PC faltando um minuto pra ele fechar, segundo a moça. Eles estavam me esperando, pois o Gola tinha dito que eu demoraria mas chegaria – fui a última a chegar, no meu ritmo tartaruga ninja. Mas cheguei. Comi pãezinhos da organização, tomei gatorade, bebi água, conversei, recarreguei as baterias. Estava me sentindo ótima. E decidi voltar pedalando.
A volta não foi um passeio no parque como a ida. Para começar, apesar de ser descida, o vento estava contra, o que é sempre um inferno. Mas se na ida estava a favor, na volta provavelmente estaria contra, aprendi. Aliás, segundo The Complete Book of Long-Distance Cycling, o vento está atrapalhando o ciclista de alguma forma em 60% do tempo, então tem que acostumar, não tem jeito. Logo no começo, desregulei o ciclocomputador, achando que algo tinha entrado na roda (na verdade o barulho que eu estava ouvindo era a corrente seca chiando, faltou levar um finish line básico). Não consegui arrumar, ainda não sabia como, e fiz toda a segunda metade sem saber minha média de velocidade. Alta não foi, considerando que cheguei já era mais de 20h, que fui ultrapassada por um pedestre (hehe) e que o vento contra tornava até as descidas algo complicado. Mas fui indo.
Foto da estrada. Cortesia Audax Brasil
Em dado momento, minha segunda caramanhola vazou em cima da mochila no bagageiro. Mas não quis parar pra pegar água em nenhum posto. A razão: estava escurecendo muito rápido e eu já tinha percebido que meu frog, que era a única iluminação dianteira que eu tinha, não daria para iluminar a estrada. Como eu não tinha pensado que pedalaria à noite, não tinha providenciado uma lanterna potente, que nem as que eram obrigatórias para o pessoal do 300. Então eu queria pedalar o máximo que eu conseguisse enquanto houvesse luz.
Não que tudo fosse desvantagem nesse cenário. Em certo momento, apareceu a maior lua cheia que já vi na vida no topo de uma montanha. Parecia recortada no photoshop, uma coisa fabulosa. Eu olhava e pensava “waaal”. E tentando ir rápido… Quando completei 135 km, escureceu de vez. Não dava pra enxergar um palmo do chão. Com aquela lua estonteante, daria para ver o chão, mas como havia os carros passando com faróis ligados, o olho não tinha tempo de se acostumar à luz da lua apenas, de modo que era apenas o breu que se enxergava. Assim, liguei para a Aline – o papel com o telefone da organização derretera na mochila quando a caramanhola vazou – e avisei que estava sem luz. Ela perguntou se eu queria que me buscassem. Respondi que não: eu queria que, se possível, alguém me levasse uma lanterna, porque agora que faltavam só 15 km eu queria completar aquela p****. [É, gastei meu mais refinado francês naquele momento, heh]. “E aproveita e manda uma garrafa de água porque eu fiquei sem lá atrás”, falei pro Gola, quando soube que a organização tinha liberado que ele fosse de carro levar uma lanterna para mim, de carona com o Flávio, um speedeiro que tinha saído fora do 300 por ter furado 4 câmaras e 2 pneus. [Shadow emprestou a caramanhola, hehe, e as lanterninhas eram do Joel]. Até o Gola chegar, uns 40 minutos, fiquei fazendo yoga no acostamento, pra passar o medinho, alongar e tal. Ele chegou eu estava em Baddha konasana, a postura da borboleta.
A passagem deles foi rápida: lanterna instalada com engasga-gatos, géis doados pelo Flávio, 976.437 palavras faladas por mim (a adrenalina me deixa, digamos, comunicativa), caramanhola na bike e eles foram embora. Eu segui pedalando. Faltando 5 km para completar a prova, tomei um belo tombo em uns cascalhos, que surgiram na minha frente do nada. Segundo Mig, era uma gangue de cascalhos, que ficou escondida atrás de uma árvore esperando para atacar donzelas indefesas… 😛 Fato é que juntando cansaço, clip, cascalho, noite, estabaquei-me. Primeiro achei que tinha perdido a lanterna, logo soltei um ufa!, por ver que não. Depois, me apavorei porque fui sentar na bike pra seguir pedalando e – cadê selim? Estava torto, com bagageiro e tudo. Desentortei, e o bagageiro começou a pegar na roda. Na hora, fiquei aflita e não atinei em como arrumar aquilo. Fiquei esperando alguém do 300 passar pra me ajudar (uns dois dos mais rápidos já tinham passado por mim, vejam só que ligeirinhos eles são). Meia hora depois passa um cara, pergunta se tá tudo bem e passa reto, mesmo comigo sinalizando loucamente que NÃO estava. Juro que achei que ele ia passar direto, mas creio que ele se arrependeu, pois ele voltou e me ajudou a consertar o bagageiro e subir o banco pra que eu pudesse completar a prova; no fim ele foi bem bacana. Até perguntou se eu queria companhia pra terminar a prova, mas eu é que não ia prender o rapaz, que claramente estava a fim de completar rápido. Agradeci e disse que ele podia ir, o que ele fez mais que depressinha, e segui, ainda meio abobada.
Mostrando o bagageiro torto para a Aline
Os últimos 5 km foram nesse susto do tombo. Parei ainda uma vez em um posto, para dar uma lavada no rosto, tirar a poeira geral, descansar pela última vez, dar uma ajeitada na cara de choro (sim, chorei de susto. Ri, chorei, gritei, cantei, tudo muito emocionante nesse Audax; é uma coisa de auto-crescimento, de auto-desenvolvimento nesse sentido). Dei um up no visu e segui para os dois-últimos-finalmente-quilômetros. Entrei na cidade com a energia ainda meio caída, por causa do tombo. Mas tudo mudou quando vi a galera na praça, fazendo festa porque eu tava chegando. Foi tão bacana eles estarem ali! Audax é talvez a única prova de ciclismo em que quem chega por último é mais celebrado do que quem chega em primeiro, porque conseguiu. Recebi mil congratulações. Não consegui completar os 150 km nas dez horas que eram as estipuladas, fiz em mais de treze; em compensação, consegui completar. E o dobro do que eu tinha me proposto, que eram os 75 km. Fiz sem me acabar, no meu tempo, e foi muito legal.
Vi que consigo ficar muitas horas em cima da bici sem surtar. E que se eu consigo fazer isso, consigo fazer praticamente qualquer coisa. Foi um marco, uma coisa incrível. Dali já mandamos uma cervejinha, um janta gostosa, um papo com os amigos, cada um contando como foi a sua experiência audaciosa… Outras duas Pedalinas, Aline e Sarah, têm histórias pra contar aqui no blog. Aline fez o 150 no tempo, na maior tranquilidade, com o pé nas costas. É a capitã do time pedalino. Sarah fez o 300 de fixa, e completou no tempo! Poucos fazem o que essas mulheres fazem. São garotas audaciosas. E por ter sido tão legal é que dia 21, semana que vem, estou indo de novo, fazer mais uma vez o Desafio 150. Vou ver que emoções o percurso de Boituva me reserva dessa vez. 😉
Gola me filmando na chegada. Reparem na curvatura da coluna cansada, hoho
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